Vou abrir a exposição de um cara chamado Marco Pegolli , os curadores me chamaram para o coquetel na terça que vem . Eu não conhecia absolutamente nada do sujeito e pedi pra ir visitar o estúdio , bater um papo com o cara , saber qualé . Liguei , a namorada atendeu , voz gostosa , melosa , sem ser rapínica disfarçada , imaginei blusinha colada , shortinho amarelo , lambuzado das tintas do Marco . Marquei pra hora do almoço , hoje uma estrevista , pra poder escrever uma matéria sobre o trabalho dele para o jornal e me preparar para a noite daqui 1 semana . Pensei em levar um dos meus quadros , mas achei puta prepotência , tive certeza que era puta prepotência , em se tratando de mim . Só levei um vinho e camisinhas , na fantasia de que o cara não estivesse em casa ( não ouvi a voz do artista no telefone , ao longe e tenho um ouvido de tuberculoso pra sacanagem ) , ou de que ele fosse um ARTISTA MODERNO ( um sacana putão , tipo que conheço bem na frente do espelho , nos dias que resolvo fazer a barba ) e encarasse uma brincadeira francesa .
Lugar bacana , atrás do muro branco , através do portão , não dava pra ver porra alguma , era só árvores centenárias , suas raízes gigantescas e um caminho sutil de terra batida , que se aprofundava no escuro . A menina veio atender . Oi meloso bacana . Moleton , camiseta branca , sem sutiã , tênis bamba-like . Tudo de bom . Eu com o vinho debaixo do suvaco suado . “Oi ...o Marco taí ?” . “Claro , você não queria conversar com ele ? Vem , entra” ( imediatamente as camisinhas secaram dentro do bolso , viraram condons múmia , vergonha , humilhação , adolescente , zé mané , você não está mais nos seus melhores anos , a loucura já passou , o trem virou metrô e te empurraram pra fora , idiota , fica na sua , vê o cara , entrevista o cara , e peça perdão pra Nossa Sra. Aparecida ) . Entrei , caminho de terra vermelha . E ela foi explicando , embaixo era a casa , em cima era o estúdio. “E aqui , Paulo , é a famosa escada.”. Grande merda . Uma escada que ligava em um lance , a casa com o estúdio . Artistas malucos e de merda . Eu precisava da merda daquele vinho . “Você tem saca rolhas lá em cima ? Ou uma espada ?” Riu . Que Maldade de Risada ! Ai . “Vai subindo , vou pegar os copos (??) , o Marco tá te esperando.” .Subi como se fosse pra receber o Oscar , o Grammy , o Politzer , o Nobel , afinal , eu estava na FAMOSA ESCADA . Toquei um piano porrada nos dedos sobre o vidro do estúdio . “Entra , Paulo !” . O Marco tinha uma voz estranha . estranha pra caralho . Me senti numa armadilha , como se houvesse algo maior que eu ( sem dúvida ) rolando em tudo aquilo . Eu ia sair correndo , pular portão , raízes , abrir a garrafa com uma pancada na sarjeta e nevermind . Mas , ele repetiu o convite . Que troncho de cara fudidão eu era ? Vai em frente , Paulão . Fui , capeta . Eram dois ambientes , o primeiro lotado de quadros , o segundo guardava a voz estranha . Parei nos quadros . Uma espécie de cofre levitando no céu . Um pedaço de queijo esmagado em um buraco de rato . Um cigarro amassado na palma perfeita , renascentista , de uma mão . Parece bosta , mas não , a escolha das cores , os tons , os relevos . Arte pura . Na cara . “cê taí , Paulo ?” . Tô , Marco . Morrendo diante de quadros sublimes . “Cadê a Marina ?” . “Eu trouxe um vinho , ela foi buscar os cálices” “Ah...os copossss” . Era isso , ele prolongava o final das palavras e parecia terminar em algo salivento . Vamos ao segundo ambiente , Paulão .
E daí , cercado por uma caixote de vidro imenso , esse quarto , com todas cortinas abertas , lá estava Marco . Sentado em uma poltrona confortável , cercado por almofadões . Segurando com a mão torta , retorcida , uma bengala . Aliás , todo o lado direito do seu corpo era torto & retorcido , uma gota da baba na boca . “E aí , Paulo ? Gostou dos quadros ? Eles que vão pra exposiçãooooo” . “Gostei , pra caralho , Marco” . E demorei pra tomar coragem e sentar , foi a mão de Marina , quente , que chegou no meu ombro , fazendo uma leve pressão pra baixo . Estalei os joelhos ocos e sentei no almofadão com Shiva desenhado . Silêncio , a não ser pelo barulho da rolha em Marina ( “rolha em Marina”??...ai , Nossa Senhora ! Rogai por nós tarados pecadores , o cara é um paralítico fudido !!) . Vinho quase fervendo nos copos de requeijão . Matei o primeiro copo de golada , fiquei ainda com mais sede e estendi o braço pra me servir de mais . Então ele começou : - Foi um derrame , 1999 , eu era promotor de eventos pra Coca – Cola , um dia , trabalhando , senti uma fisgada na cabeça e apaguei . Apagado por 3 meses . Fisioterapia , terapia ocupacional , fono . dispensei a psicóloga , fora minha mãe , são todas uma vacas incompetentes . Dispensei também a cadeira de rodas . No início eu me esfregava pelo chão , como um berne envenenado . Eu tentava falar , mas a voz , ou o único som que eu conseguia produzir , saia pelo cú . A Marina era minha terapeuta ocupacional . Foi ela que me fez andar , no dia que eu vi o bico do peito dela , um ...favor...pro doente , foi assim que ela me disse , pra sacanear com minha auto piedade . Andei . Foi com ela que eu fiz a festa , no dia em que subi essa escada . É dela a mão no quadro . E eu sou o cigarro . Ela não se queimou comigo . Ela que fez meu pau subir , torto , mas subir . Ela que me ajudou a assinar o primeiro quadro da minha vida , enquanto eu chorava e tinha náuseas de felicidade . E não parei mais . Se sou um cigarro , que a vida me trague até o filtro . É brasa , mora ?
(RISOS DOS DOIS . CÓLICA EM MIM ) . Ele devia ter uns dez anos a mais que eu , cabelos compridos , negros , óculos escuros , o tempo todo um sorriso torto , que não parecia defeito , mais um esgar irônico e bem humorado constante . Eu estava apaixonado pelos dois . Existem armadilhas do Bem . Ou do Além do Bem .E logo o papo estava animado , fumamos , rimos , ele desenhou minha cara com giz vermelho e azul em uma folha sulfite . Fiquei incrivelmente bonito e real , esquisito isso . Por fim :
- Porra , Marco , você é vida pura , Marina teu cara é demais . Quantos anos você tem , cara ?
- 42 . sou de janeiro .
- Eu também . 22 de janeiro . 1970 .
- Sério ? – Marina arregalando os olhos de fruta doce .
E caíram na gargalhada . Acendi mais um pra esperar passar . Tudo era natural , inclusive o Tempo certo pras coisas .
Ela :
- É que...ai ,ai...o Marco também é de 22 de janeiro . Olha eu aqui com esses dois aquarianos malucos ! Tá explicado !
E caímos na gargalhada .
Beijos .
Paulo.
Icq: 173033938 (UIN)