Páginas de Literatura Corporal

1.8.04

Ela estranhou .
Mas eu sou estranho .
Nosso amor era de muita liberdade .
O mundo é de muita liberdade .
Amanhã posso acordar e decidir que não vou
trabalhar e arrumar um atestado médico
e ficar em casa lendo Louis Ferdinand Céline
e suas reticências praguejantes .
Mas como eu ia dizendo ,
ela estranhou quando eu pedi que amarrasse meus
pulsos &
colocasse um saco na minha cabeça
e me deixasse só .
Sem histórias da carochinha e romance .
Trancasse o quarto por fora .


Eu sufoquei um pouco no início
Devo ter ficado um pouco cinza e roxo e verde e todas as cores do
fudido arco-íris .
Devo ter me arrependido do DESEJO ANORMAL em algum
momento ,
Mas depois , eu me lembro bem ,
Veio a paz .
Como eu nunca sentira antes ,
nem com ácido , nem com diazepan na veia , codeína
o que fosse ( mesmo amor , tesão , sexo , essas coisas que apenas quase
chegam lá )
Euforia .
Desistir de lutar .
Entrega absoluta .
O cansaço produzindo Gozo .
Tenho que sobreviver ?
Então você , cara , se pergunta "por que?"
E o instinto não passa de uma série pesada
de obrigatoriedades.
Ter a certeza que vai estar vivo para assistir os
programas de auditório na semana que vem .
Ter certeza que pagou todas as contas,
que nenhum escroto de pasta 007 vai cortar a sua água ,luz, telefone e putas .
Ter certeza que ainda tem cerveja na geladeira e lazanha .
Ter certezas sobre as drogas , as eleições , as mulheres , os atletas , as baleias , o bom gosto , a literatura , a inveja , o Deus , os amigos , os sapatos , parar de fumar , a diarréia , a tecnologia , a balança da farmácia , as pedras na calçada , as esfihas abertas , o perigo dos motoboys , as cantoras sapatas , as sapatas que não cantam , a coluna social , os negros, santo expedito ,as alcaparras, as alpargatas , os judeus , a moça que me mostra um peitinho pela webcam .
Enfim , essas demandas , todas interligadas pelo fio tênue da Discursividade .
Que boiam no ar que nos rodeia e torram o saco .
Por isso ,
a Paz .
Só alcançada no LIMITE da tal da morte , outro detalhe ridículo .
Mas
Alguém veio me tirar a plenitude .
Eram enfermeiros e um médico e polícia e advogados e padres e monges
Arrombando a porta do quarto , me "libertando" ,
e atrás dessa massa estúpida e fotógrafos
Lá estava ela , a maca passando por ela ,
Lá estava ela chorando , se sentindo culpada ,
dizendo que não poderia suportar a idéia .
Esse é o problema da Humanidade : não suportar .
Inventam leis e divãs e , como ia dizendo , atestados médicos.
Me levaram para o pronto-socorro ,
a família tentou abafar o escândalo ,
com sucesso das corporações milenares .
Agora posso ficar em casa ,
de pijama e chinelas ,
e ela me dá os comprimidos
e me faz cafuné
e somos
relativamente
felizes .