“KAYA”
por Paulo Castro .
A leitura de poemas estava voltando à moda . Meu desejo de ganhar dinheiro nunca saiu da moda . Em avião vazio você pode fumar e beliscar a bunda das aeromoças . Quando eu comecei era assim . Não continuava diferente , somando-se a hipocrisia e algum risco , apenas jurídico . Me contentei com um cigarro . Não me contentei com a revista de bordo . Ilhas Astúrias . BMW . Sapato de crepe . O fim do Rolex na era digital . Dobrei de volta , enfiei no saco de vômito , puxei a cordinha . Gesto extramemente conceitual , que demonstrava a rebeldia do poeta diante do mundo . Dois goles dentro do copinho descartável e um lexotan 6 mg , o avião mergulhava de ponta cabeça nas nuvens brilhosas . Fechei os olhos e tentei decorar novamente o que deveria estar certeiro na minha frente , no momento da leitura . Não os versos . Esses você pode inventar na hora , quanto pior for , mais a classe universitária te acha um monte de coisas bacanas dentro de um estilo de mediocridade a ser seguido . Os professores de poesia clássica ficavam como zumbis . Eles não tinham uma coluna semanal no jornal . Eles não treinavam na frente do espelho . Ninguém reconheceria seus nomes . Não davam entrevistas . Trepavam com tristes professoras da engenharia mecânica nas festas de confraternização , bolinho de bacalhau e obesidade . Não os versos , mas aquele rosto que eu roubara da internet , cinco fotos , passar em detalhes o formato dos olhos , a angulação dos ombros , a curva das unhas vermelhas . Compridos fios ruivos , abundantes , lisos para jogar em atitude . E os lábios , aqueles lábios .
- Você aceita o convite para a leitura ? Os alunos te adoram .
( lábios rindo )
( lábios assoprando displicentemente fumaça )
( lábios escondidos pelas mãos perfeitas )
( lábios chupando uma colher de sobremesa até o talo )
( apenas lábios passivos , beirando a puerilidade .)
- Que turmas estarão presentes ?
( transformando aquelas imagens em informações via programas de busca )
- Literatura . Cênicas . Humanas em geral .
- Propaganda ?
- Podemos convidar .
- Façam isso e eu vou .
( ...é a alma do negócio .)
- Vai ler poemas de qual livro ?
- Inéditos . Pode ser ?
- Melhor impossível .
- ...
- ...
- Desculpe , mas por que o interesse pelo pessoal da propaganda ?
- Novos tempos .
- Não entendi .
- Tudo bem , pra mim .
Eu jogava , ampliadas , as fotos no azul . Sem dúvida alguma ela era um mito , um fetiche . Não sabia se ela sabia disso . Com mais 6 mg e martini e pude ouvir Brian Kelly cantando “She is Dancing.” . He is dreaming . Dormi e acordei no aeroporto com a guitarra soando dentro do bolso da camisa . Apertei os olhos e a mão da aeromoça no meu joelho .
- Senhor ?
- Fica fria . Não é com você .
- Boa estadia .
- É .
Tudo muito chato . O frigobar . Os amendoins . Do not disturb . O telefonema confirmando se eu cheguei bem . Se estava bem instalado . Que o quadro na cabeceira era um Basquiat original . Merda original . O telefonema conformando que a leitura seria às 20:30 , mas que eu deveria chegar atrasado meia hora , para “esquentar os corações .” . Tirei o fone do gancho . A mesa e a cadeira não combinavam com o restante da decoração do quarto . Nada combinava entre si , talvez essa fosse a idéia . Nos papéis de carta , em letras rebuscadas exageradamente , “Hotel Rio Grande” . O mesmo logotipo na caneta metida à dourada . Tentei :
1) “ Cinta-liga , Vestido Xadrez . Fantasmas pedintes invadem o seu armário ...”
2) “ Você saiu de uma tela em combustão saudosista . Você saiu de um baile de formatura . Você saiu úmida do banco de trás de um ...”
3) “ Agora estamos frente a frente . Logo estarei dentro de você . No ouvido , te contando um segredo de Deus...”
4) “Com quem você anda ? Quem sonha em homicídio por sua causa ? Quem manda que você não me chame ? O canivete estala e...”
5) “ Hallelujah , hallelujah : língua entre sua pernas , dobradas sobre minhas costas ...”
Uma tentativa pior que outra . Claro que o povinho iria aplaudir . Não tinha vindo para isso . Não tinha saquinho de vômito para jogar tudo dentro . Joguei na privada , mijei em cima deixei a mistura lá , que entupisse a porra do encanamento . Eu tinha vindo para que ?
< pela obsessão inata de encontrar a mulher mito , a mulher fetiche , de força-la a sair dos dois planos da foto , da tela , da letra , com dupla intenção , me convencer que essa mulher não existe fora da ficção , ou me perder caso ela fosse real , então , “a alma do negócio ” , feita força de atração sexual , libido cinematográfica palpável , amém de joelhos , para sempre entornando beijos , do umbigo até a estrada de pêlos . >
Eu tinha , digo , vindo para ler poemas e ganhar dinheiro .
Mas eu guardava um nome no bolso na camisa : KAYA .
Para a merda com o papo furado . Fui até a mistura “poemas iniciados” + “mijo” e acrescentei algo mais . Work in progress .
O nome dela era KAYA . O nome do rosto dela . O nome do pé dela . O nome do lábio dela enfiado à força na pele , era KAYA . Saia curta , cinta-liga , década de 50 , som dos 70 , ingenuidade trabalhada dos 90 .
Missa Negra em metro e pouco de mulher . Cento e dezoito fios de cabelo ruivo tampando um dos olhos , o mais esperto : a boca da espingarda escondida no meio do mato . Eu vim para ser vitimizado .
Recoloquei o telefone no gancho . “Me liguem com o professor tal e etc da Silva .” . A telefonista disse que eu esperasse alguns minutos . Não passaram trinta segundos . Trinou :
- Grande poeta !
- Acho que sou eu .
- Manda lá .
- Sabe . Tenho pensado na relação entre a arte e a propaganda . Gostaria de falar sobre isso , mas não quero misturar com a leitura de poemas ...
- 20:30 com algum atraso , hein ?
- Exato . Eu sei . Mas gostaria de deixar algo mais dessa minha visita , além da leitura . A revista da universidade . Uma entrevista para o próximo número . Preciso de alguém do curso de propaganda ...
- Mas o valor ...
- Está incluído .
- Que maravilha . A generosidade dos grandes artistas ! Que horas ? Não vai te cansar ? No hotel mesmo ?
- O nome dela é Kaya . Aviso a recepção . É só chegar e subir .
- Kaya de que ? Por que ela ? Em quanto tempo ?
- Você é um puta idiota . Um pé no saco . Já te disseram ? Kaya é o nome e já está atrasada .
- Cara ...você é um barato . Fala tudo que pensa , né ? Até de noite e capriche na entrevista . Vou achar e mandar a tal de Kaya . Que nome !
- É . Tchau .
Ela veio . Dizer o que ? Ela trouxe uma polaroid . Eu fiz fotos , pedi que imitasse as outras , aquelas guardadas na memória , que não fui eu que bati . CLICK . CLICK . CLICK . Ela trouxe um gravador e fitas virgens . Gravamos todo nosso encontro . REC + PLAY . Não tocamos em arte . Não tocamos em propaganda . Canivete Cinta-liga Maço de cigarro dividido . Pele Frente Costas Grito . Lençol Martini gelado dry dividido em colheres chupadas . CLICK . “Eu não preciso de mais gelo , guri . Eu levo o gelo comigo” . “Boa frase , menina .” . Curiosidade erótica em monossílabos . Nunca tinha ouvido falar em mim . Às 20:30 tinha um compromisso bem longe da faculdade . Cortina Vento Chuva Silêncio Abraçados . Falei de charme essencial . Falou que era uma puta , manuseando o estilo magnético da enrustida . Quatro fitas de sessenta minutos . Exaustão .
Como se despedir ? Fingi sono . Ela saiu pela porta .
Ainda havia passagem para o vôo das 20:15 . Jazz no saguão . Sacola “Hotel Rio Grande” com fitas e fotos .
20 : 45 estava de volta ao céu , preparando para pousar , senhores passageiros .
21 : 30 em casa . Onde estaria KAYA ? Eu não me fiz essa pergunta com seriedade . As fitas no aparelho . As fotos coladas com durex na parede , cercando a tela do computador . ICQ ON LINE , por via das dúvidas .
Comecei a escrever sobre ela , sobre fetiches , taras , pessoas que viram marcas nos corpos dos outros , tatuagens nos cérebros alheios .
Continuei escrevendo madrugada .
Ela existe . Eu existo . Posso provar .
Enquanto todos esperam alguma coisa .