Páginas de Literatura Corporal

23.6.04

Chego em casa e tiro o telefone do gancho .
Durmo porque estou sem sono e sem nada .
Atendi uma garota que matou o pai quando ele saia pra trabalhar.
( ela não queria ficar só)
Atendi um garoto que matou um velho com cano de ferro.
( ele simplismente precisava fazer isso no canto da rua )
Mas isso não me impede de fazer o mundo me deixar algumas horas
em paz .
Eu sei que deveria ter feito uma série de coisas
e que vão me telefonar cobrando.
e estarão certos .
e eu errado .
Só que não me encontrarão .
eu vou esquentar algo na cozinha ,
hoje tem fígado , arroz e feijão
e depois vou deitar de jeans , camiseta e sem sapatos
comendo na cama de casal


Quando eu despertar , já estarei excitado ,
lembrando dela e como ela fala pouco
perto de todos
e como a cor de seus cabelos ainda grita
aqui dentro ,
e como ela me abraçou de lado e esse foi o
nosso contato físico mais intenso e silencioso
o mundo agitado e apenas esse abraço de lado
a gente meio sem jeito e sem graça
- Vai que alguém nota ?
Estamos ambos pálidos com as mãos quentes
e vontade de se agarrar ali mesmo
enquanto os outros falam ,
eu sei , eu sinto o cheiro ,
mas logo nos despregamos pois pode ser perigoso
e eu continuava sendo para ela alguém muito
MISTERIOSO .
Estou sozinho , excitado e pensando nela ,
com o telefone fora do gancho .
E se por bobeira ela tivesse tentado me ligar ?
Falar comigo sobre tudo que anda acontecendo
no mundo entre nós ?
Ou apenas ficar quieta como sempre e sorriso arregaçado
do outro lado ?

Estou descalço , com jeans e camiseta
e corro para colocar o fone no gancho
( Deveria haver um filtro adesivo a ser colado sobre o mundo
e suas vozes e exigências , isso seria vendido em super-mercados
e em farmácias , mesmo em casas de utilidades gerais ,
você programaria o filtro e poderia ir dormir
exatamente por estar sem sono e cuidar de crianças assassinas ,
depois de programado ,
você se enrolaria no filtro como se fosse um cobertor ,
ele poderia até mesmo ser aquecido eletricamente ,
e estaria protegido até o horário combinado )
colo o fone contra o ouvido :
- Existe recado para você na sua secretária digital...
- Senha personalizada com cinco dígitos...
- Seu DDD sem o zero ...
Faço tudo isso com sangue imaginário nas mãos que vivem
quentes e MISTERIOSAS .
Enfim , o que você me diz , mundo ?
Diz logo , que se for o caso já saio correndo daqui
para encontra-la de emergência ,
Diz logo , que se for esquema , marco com ela na esquina da alegria .

"-Aqui é o seu cartão VISA ...entre em contato com nossa Central de..."

Eu já sou um cara centrado .
Amanhã vou atender uma epiléptica ,
cujas crises consistem em esfaquear quem estiver mais próximo .
Hoje eu almocei fígado frio , arroz e feijão .
Estou alimentado e com planos para o futuro .
Um pouco sozinho e sem sono , é verdade ,
um tanto excitado , exato ,
Mas vou tomar sol em paz
deitado no quintal ,
sem consciência pesada por paixão .
Até que cumbro para com as formalidades .


Paulo.

8.6.04

Não me interessam imagens .
Estou sarado delas .
Quero orgãos vivos, desconectados de um corpo.
O corpo , como nós o entendemos,
fisiologicamente,
impõe um hierarquia aos tecidos.
Eu os quero soltos .
Poucos sabem como é gozar com o estômago
ou mesmo
entre os dedos, nos cílios dos olhos .
Quem não sabe é triste de uma forma
exasperante,
em que condenam as letras que também
desejam gozar .
Que as letras gozem sozinhas ,
que façamos ligações inusitadas entre elas
São apenas brinquedos , pistolas de plástico
que as pessoas usam no poder e na ignorância
dos textos agradáveis .
Eu quero me ligar a alguém
( penso nessa pessoa AGORA)
da mesma forma como quero
orgãos , letras , átomos anárquicos .
Essa pessoa não sabia algo sobre mim
e quando soube , ficou muito decepcionada,
isso costuma acontecer quando se trata de mim ,
mas eu não gostaria que sentimentos religiosos
e morais
Impedissem que tentássemos ao menos uma vez .
Seria realmente fantástico
e eu iria comer balas o dia todo ,
deixando os papéis soltos ao redor da cama ,
amassados como cadáveres em chamas
ou flores exóticas .
Seria exuberante se eu pudesse , algum dia desses,
beijar a boca e me esconder em seus cabelos .
Eles são trigo liberto enfiado no crânio .
Mas o tempo todo tenho que respeitar o corpo no seu
formato ultrapassado e grotesco,
a imagem , as letras dos cheques ( são perigosas),
a moral dessa fazenda urbana .
Estou cansado de orgãos sexuais bucólicos .
Afinal , já disse Jean Basquiat :